Monday, July 27, 2009

De Magalhães a Sócrates, o escândalo da robotização da educação

Este é um texto mais sério que o costume das nossas publicações na Simbiose do Xupa Xupa, mas vale a pena viajar no pensamento do autor Raul Guerreiro sobre A experiência "Magalhães" aproveitando a infância portuguesa.

Os tempos actuais são marcados por um fenómeno de mutação radical das consciências, como produto da liberdade individual em expansão explosiva, mais o desaparecimento de tradições a todos os níveis, e a crescente automatização da vida. Neste contexto de sabor orwelliano, mais do que nunca o mundo da educação continua em busca desesperada de um conhecimento profundo do Homem, algo como uma Antroposofia capaz de alargar a mera Antropologia de inspiração animal que alimenta a pedagogia tradicional. Nesse interminável afã de renovação que já dura séculos, sucederam-se inúmeras modas inovativas, que sempre demonstraram em seguida ser meros pensos remediativos, incapazes de ir ao fundo da questão. Após a onda de cientifismo que deleitou o Século XIX, sobreveio uma educação dedicada fanaticamente ao polo oposto. Foi o hediondo "culto da raça", com a sua adoração ideológica dirigida à educação do espírito através do corpo, algo que entre nós encontrou expressão na famigerada "Mocidade Portuguesa", decalcada da Mocidade Hitleriana da Alemanha nazista.

Assiste-se actualmente a uma nova inversão ideológica de polos. Tenta-se agora uma concentração cega sobre um intelectualismo materialista focado no cérebro humano, à mistura com uma idolatria de meios electrónicos aplicados à educação. Sem dúvida a tecnologia da informática das últimas décadas faz parte de um extraordinário e bem-vindo avanço nas técnicas de comunicação, estando a modificar muitos parâmetros nos processos laborais, na organização empresarial, no acesso à cultura bibliotecária e nos hábitos de consumo e de recreação entre adultos e jovens-adultos. Mas o aparelho estatal aplicado à educação, apesar de ainda imerso em vetustos esquemas intelectualizados, tornou-se agora vítima de arrebatamentos demagógico-tecnocratas, onde falta a clareza e a coragem para enfrentar as verdadeiras necessidades humanas das novas gerações. Surgiu assim esta experiência bombástica de distribuição em massa de máquinas, como se isso fosse o dernier cri em matéria de educação, que permiirá a Portugal apanhar o aparentemente perdido combóio da civilização europeia.

O mundo educativo português, para além de assolado por vibrantes conflitos de natureza laboral, está hoje mergulhado em uma estranha mistura de excitação e indolência, conforme é lançada uma campanha tecnológica anunciada como "sem igual no mundo": proporcionar a meio milhão de almas infantis no nosso ensino básico o convívio físico e psíquico permanente com um computador portátil, epopeicamente alcunhado de Magalhães. Acompanhada por uma veneração tecno-mercadológica sem limites, a máquina é apresentada como autêntica janela para o futuro, para o mundo e para a vida, utilizável na escola, na rua ou em casa, de facto como propriedade de cada criança. Semelhante medida, que a rigor é uma experiência laboratorial sem qualquer qualificação prévia, abate-se como uma verdadeira onda tsunâmica tecnológica sobre o humanamente já crítico mundo escolar, sendo que numerosas realidades pedagógicas, médicas e ético-sociais sobre os seus efeitos negativos estão a ser criminosamente ocultadas dos pais e mães, professores e grande público.

A experiência foi anunciada espectacularmente como educacional, mas possui por trás do palco um histórico bem diferente. Como já se sabe, "Magalhães" é apenas um nome fantasioso para uma versão modificada de um minicomputador da mega-empresa americana Intel. A Intel alterou a sua estratégia de negócios após abandonar uma anterior aliança com a OLPC, uma fundação americana que anuncia fanaticamente ter por missão "mudar o mundo" através da distribuição de minicomputadores para cada criança no nosso planeta. Para a conquista do enorme mercado das crianças, a Intel passou a celebrar acordos de alto nível directamente com governos de países subdesenvolvidos, com projectos de assamblagem local da máquina sob diversos nomes e diversas modificações. A exemplo da Irlanda, onde o governo assegurou à Intel subsídios, condições preferenciais e mão de obra barata para a instalação da sua segunda maior unidade fabril, Portugal foi agora estrategicamente escolhido como país praticamente terceiro-mundista, mas integrado na Europa, para assegurar operações a baixo custo dedicadas à exportação em massa de um computador para um mercado mundial de mais de 1 bilhão de almas infantis.

A distribuição entre nós de meio milhão de computadores portáteis, anunciada espalhafatosamente como uma "revolução para a educação em Portugal", reduz-se na realidade a uma mera jogada promocional para acompanhar um big business internacional com gigantescas proporções. Mas no meio de tanta euforia, há hoje um novo factor de consequências imprevisíveis: como empresa-mãe do Magalhães, a Intel está actualmente confrontada com uma gravíssima crise global, tendo sofrido no final do ano passado uma queda de 90% nas vendas. Está prevista a eliminação de 6.000 postos de trabalho e o encerramento de unidades na Malásia, Filipinas, Oregon e Santa Clara. Enquanto isso a Índia, um país com grandes capacidades tecnológicas independentes, optou por dar as costas aos potentados ocidentais e produzirá em breve em massa o seu minicomputador "Sakshat" a um preço irrisório.

A experiência electrónica suscita não só a nível pedagógico, mas também político, económico e tecnológico muitas questões flagrantes. O que é que uma colossal empreitada mercadológica, dirigida para a assamblagem em Portugal de computadores de design americano para exportação, tem a ver com a nossa atardada educação infantil? Porque deverão professores perder o seu precioso tempo com tarefas administrativas estranhas à profissão? Será legítimo para indivíduos colocados em diversos níveis de funções públicas transformarem-se em manifestos agentes de vendas de um consórcio empresarial internacional dirigido para a clientela infantil? Que autoridade humanística e pedagógica tem semelhante consórcio industrial para vir instruir os cérebros dos nossos professores quanto ao estilo de ensino robotizado que pretendem implantar entre a infância em todo o mundo? Que negociatas gigantescas estarão em curso, sob a respeitosa capa da educação, para vender ligações de internet, reparações de computadores e a habitual procissão de impressoras, periféricos e softwares de toda a espécie? Serão de admitir como legítimas as invasões da esfera familiar e infantil pela artilharia publicitária magalhânica, que já começou a injectar nas mentes infantis propostas sedutoras como "Ganha um iPhone 3G" ou "Ganha um Nintendo DS Lite"? Surge até a grave pergunta computacional: Será legítimo acorrentar a próxima geração portuguesa, praticamente a partir do berço, ao potentado exclusivista do sistema operacional Microsoft?

Tudo isto vem evidenciar o fenómeno pouco conhecido da verdadeira febre que se apossou do mundo dos negócios, conforme foi descoberto a nível global um astronómico mercado infantil até agora praticamente intocado. Muitas mais questões delicadas poderiam ser formuladas, mas conforme a experiência magalhânica vem descaradamente apresentar como espectáculo educacional aquilo que é na realidade uma manobra de marketing usando a infância portuguesa como objecto laboratorial, a urgência está na abordagem mais detalhada dos danos profundos que daí advirão para a formação das personalidades da próxima geração de portugueses.

Em Nova Iorque, conforme as autoridades descobriram que muitos alunos vinham usando os seus minicomputadores portáteis, oferecidos pelas escolas, para enviarem para os seus camaradas soluções e respostas para testes e exames, bem como para descarregar filmes pornográficos ou interferir ilegalmente nas actividades do comércio local, os pais e as escolas apertaram as suas medidas de proibições internéticas – algo que aliás também está previsto para a experiência Magalhães, na forma de um Programa de Controlo Parental. Mas em pouco tempo os alunos encontraram não só soluções técnicas para contornar as simples proibições, como ainda publicaram na internet os respectivos códigos e procedimentos, permitindo assim a quaisquer outras crianças fazerem o mesmo. Além disso, muitos dos computadores apresentavam constantemente irregularidades funcionais, e em dias de provas a rede de internet sofria irremediáveis colapsos, devido aos milhares de alunos que tinham os olhos cravados em seus mini-ecrãs, em vez de procurar a ajuda de seres humanos chamados professores. Assim, a exemplo de muitas outras escolas no país que haviam participado de dadivosas campanhas de distribuição do género "um computador para cada aluno", as autoridades escolares decidiram retirar as máquinas das mãos dos miúdos, devido a demonstrarem ser uma absoluta decepção educacional.

Conforme declarou Mark Lawson, presidente de uma junta de educação, passados setes anos não havia qualquer resultado que evidenciasse um impacto positivo sobre o rendimento escolar dos alunos. Onde quer que a distribuição em massa das máquinas havia sido implementada, elas tornaram-se na escola um verdadeiro impedimento, provocando uma dispersão para o processo de aprendizagem. Além disso, o crescente abandono dos computadores pelos alunos durante trabalhos escolares, o uso abusivo para fins particulares, a insuficiente preparação dos professores, mais os gigantescos problemas logísticos e financeiros com a manutenção de milhares de aparelhos, forçaram os próprios professores a tomar uma medida extrema: boicotar o seu uso.

O Departamento Nacional de Educação dos Estados Unidos acaba de apresentar um estudo demonstrando que não há diferença no sucesso académico entre estudantes que anteriormente usaram, ou não, programas computerizados para a aprendizagem das disciplinas mais críticas na formação escolar: a matemática e a leitura. Estas e outras decepções catastróficas vieram demonstrar como a tecnologia pode ser abraçada com paixão por autoridades pedagogicamente desinformadas, apenas para deixar a classe docente confusa perante a tarefa de enxertar máquinas em um processo de trabalho eminentemente humano.

Um relatório da Dra. McGregor, da University College London, publicado na prestigiosa revista inglesa de medicina "Lancet", salienta que a promoção da inteligência infantil na fase inicial da vida está associada a factores totalmente diferentes. Ficou demonstrado que a implementação de actividades lúdicas não digitais é capaz de promover o quociente de inteligência (IQ) mesmo em crianças que sofram de malnutrição e sub-estimulação, como é o caso de milhões de crianças no terceiro mundo. Conforme a pesquisa concluíu, uma simples intervenção dos governos ao mais baixo nível, e a custos irrisórios em comparação com tecnologias high-tech, poderia ter uma influência decisiva para mudar as atitudes e encorajar actividades, com imediatos resultados positivos para o rendimento escolar.

Os Drs. Clotfeiler, Ladd e Vigdor, da Harvard University, pesquisaram recentemente dados de quase 1 milhão de alunos e verificaram que os melhores resultados em testes de matemática e leitura foram alcançados por crianças que não tinham acesso a computadores em casa. Para alunos com computadores, o acesso à internet não revelou quaisquer benefícios adicionais. Além disso, os resultados indicaram que disponibilizar em larga escala o acesso a computadores em casa resultaria contra-produtivo para os esforços de reduzir disparidades raciais, sociais e económicas.

Uwe Buermann, colaborador científico do Instituto Ipsum de Stuttgart e docente de Ciências Computacionais em Kiel, na Alemanha, sublinhou que os meios electrónicos presentes na vida de uma grande parte da população infantil são cada vez mais ingenuamente considerados pelos pais como simples brinquedos, mantidos nos quartos das crianças, tornando-se assim praticamente uma propriedade particular que elas podem usar a bel-prazer. E conforme as crianças mostram uma aparente habilidade superior à dos adultos para lidar com tudo isso, muitos pais e educadores ficam confortados e deixam de se interessar pelos efeitos negativos, imaginando que são coisas inofensivas e tipicamente infantis. Entretanto, inúmeros estudos rigorosos já atestaram que o convívio prematuro com computadores impede de maneira notável o desenvolvimento de uma variedade de capacidades e habilidades. Assim, precisamente as crianças iniciadas muito cedo nas tecnologias da comunicação sofrem posteriormente de uma limitação nas suas chances pessoais e profissionais, permanecendo condenadas a uma dependência dos meios electrónicos para o resto da vida.
Nas escolas, cada vez mais crianças mostram debilidades motrizes designadas como sintomas de Distúrbio de Hiperactividade e Défice de Atenção (DHDA). A neurobiologia já atestou que em numerosos casos estamos aí na realidade confrontados com danos psicológicos e orgânicos derivados do consumo de meios electrónicos na primeira fase da infância. Os apregoadores pró-digitais gostam muito da frase "Os computadores ensinam as crianças a lidar com computadores". Mas imaginar que isto já constitui uma preparação para a vida é entregar-se a uma ilusão bastante elementar. A única coisa que as crianças em idade do nível escolar primário conseguem realmente aprender com os computadores é a manipulação dos mesmos, o que não deve ser confundido com uma competência medial. Para uma competência medial é preciso primeiro ter-se uma suficiente capacidade de auto-avaliação do uso individual de qualquer aparelhagem, mais uma criatividade suficientemente desenvolvida, e ainda um saudável discernimento crítico acerca dos conteúdos recebidos audiovisualmente – coisas que as crianças só alcançam após o período primário. Por outras palavras: para as crianças saberem usar os meios electrónicos, em vez de serem elas próprias usadas pelos mesmos, elas precisam de maturidade.
Na Universidade de Munique, um estudo realizado pelos Drs. Fuchs e Woessmann, com o patrocínio da Volkswagen, analisou em detalhe o meio-ambiente computacional familiar e escolar. A conclusão menciona que a mera presença de um computador em casa está negativamente relacionada com o rendimento escolar dos alunos. Por outro lado, a existência de computadores na escola demonstrou uma relação insignificante com a performance geral dos alunos. A disponibilidade de um acesso à internet na escola mostrou inicialmente algum efeito, mas esse efeito degradava-se rapidamente conforme aumentava o número de visitas internéticas por semana. O estudo veio confirmar e aprofundar rigorosos trabalhos anteriores de especialistas internacionais, que já haviam determinado resultados decepcionantes entre crianças, em termos de rendimento educacional com o uso de computadores. Os autores acabaram por concluir que onde quer que os computadores sejam aplicados para substituir outros tipos de instrução, quem sai prejudicado é o aluno.

Um computador permanentemente à disposição das crianças constitui assim na realidade um obstáculo e um factor distractivo para uma aprendizagem que envolva uma actividade mental criativa. Entretanto, uma nova estirpe de tecnocratas desinformados, dispersos por empresas milionárias e ministérios, sonha obstinadamente com meios electrónicos aplicados à educação como forma de divórcio do contacto professor-aluno. Tipicamente eles gostam de argumentar aos quatro ventos que "saber manipular desde cedo um computador" é algo que promove habilidades comunicativas fundamentais para o futuro, aumentando as chances do sucesso profissional na vida adulta. O aspecto pernicioso, e deliberadamente escondido da opinião pública, é que ocorre um sacrifício de outras aptidões, anímicas e sociais, essenciais para a vida. O desastroso efeito final resulta fatal para uma educação equilibrada, pois são precisamente aquelas aptidões sacrificadas – e não a capacidade de manusear uma máquina – que mais tarde se revelam como críticas para a estabilidade da personalidade pós-pubertária e para a integração dos jovens-adultos no mundo do trabalho e na interacção puramente humana.

Entre muitos pais e educadores espalhou-se também a crença ingénua de que deixar crianças em frente de um aparelho de televisão, vídeo ou leitor de DVD contribuirá para torná-las depois mais vivas e mais hábeis para lidar com computadores e meios electrónicos complexos, quando entrarem para a escola. Os Drs. Zimmerman e Christakis, da University of Washington, atestaram pelo contrário que as populares séries de vídeos infantis estão a fazer mais mal do que bem, especialmente no que diz respeito a crianças com dificuldades de desenvolvimento da linguagem. Crianças expostas de maneira cumulativa a tais programas sofrem um efeito exactamente inverso, deixando de aprender novos vocábulos. O resultado negativo do consumo de softwares de animação, mesmo quando apresentados como programas educativos, foi também verificado em estudos na Faculdade de Medicina da University of New Mexico. A interacção das crianças com o mundo real revelou-se como fundamental, sendo que as habilidades linguísticas podiam ser melhoradas até com o simples expediente das crianças ouvirem regularmente histórias lidas por adultos. Os pesquisadores concluiram com uma condenação cabal: a exposição prematura de crianças a programas audiovisuais em computadores, aparelhos de vídeo, etc. só pode produzir o aparecimento de uma geração de crianças hiper-estimuladas e posteriormente deficitárias em termos de capacidade de concentração.

A Academia Americana de Pediatria realizou um vasto estudo clínico sobre saúde familiar e infantil, a respeito da importância dos jogos e das brincadeiras reais, não digitais, para a educação das crianças. A conclusão aponta para o facto que essas actividades desempenham um papel absolutamente essencial para o desenvolvimento, contribuindo para o bem-estar cognitivo, físico, social e emocional, tanto das crianças como dos futuros jovens. Além disso, essas actividades oferecem uma oportunidade ideal para os pais envolverem-se mais profundamente no verdadeiro convívio humano com os seus filhos. Infelizmente, essas actuações pedagógicas salutares no seio de famílias, escolas e comunidades vêm sendo abandonadas devido a uma série de factores, como vidas mergulhadas em stress, desintegração das famílias, crescente tendência para abordagens intelectualísticas e tecnificantes nas escolas, bem como um excesso de mera recolha e acumulação de informações.

Também o Dr. Elkind, na Universidade Tufts de Massachusetts, estudou durante muitos anos o desenvolvimento de crianças, verificando que a habilidade auto-lúdica simplesmente está a desaparecer sob o efeito conjugado de computadores, televisão, jogos electrónicos, leitores digitais e actividades sedentárias, bem como uma crescente pressão dos educadores para forçar crianças do nível primário a obterem cada vez mais rapidamente resultados de cariz académico. Para milhões de crianças, a época da infância passou a designar um período de vida confinado a quatro paredes. Até jardins de infância estão a ser cada vez mais transformados em verdadeiras escolinhas academificadas, onde as crianças são prematuramente tratadas como mini-adultos, sendo até submetidas a testes elementares e recebendo tarefas para casa.

Em 1840, após séculos de educação infantil atrelada às pesadas obrigações laborais das famílias, o genial pedagogo Froebel foi o primeiro a usar a expressão "jardim" para designar locais de abrigo e recolha das crianças, reconhecendo já nessa época a importância marcante das práticas lúdicas e naturais para a completa formação da personalidade humana. Nos últimos anos, sob o influxo de personalidades intelectualistas ultra-ortodoxas como a Dra. Donata Eischenbroich, que distribuíu pelo mundo a perspectiva cientifista abstracta do "aproveitamento estratégico da inteligência infantil nos primeiros anos de vida", está em curso em muitos países avançados um processo de perversa robotização até de jardins de infância, com a instalação de potentes centros de computação disfarçados como brinquedos. Por outro lado, o mercado extremamente lucrativo dos produtos para crianças, apoiado por estratégias de marketing e publicidade sumamente refinadas e sem controlo ético ou educativo, vem igualmente alimentar um amadurecimento prematuro das crianças, ao promover uma "compressão ectária", de modo que produtos concebidos para crianças maiores, ou até para adultos, sejam consumidos por crianças de cada vez menos idade. Iludidos por promessas tecnocratas de modernização das suas actividades, muitos pedagogos passaram assim a menosprezar como factor supérfluo as actividades de tempos livres das crianças, e o seu papel essencial para a aquisição de uma série de habilidades anímicas permanentes, que são impossíveis de obter de qualquer outro modo.

A própria designação das actividades foi reduzida para as três letras burocráticas ATL e foi tomar-se emprestado ao mundo terapêutico o neologismo "cuidadores de proximidade" para designar por exemplo avôs, avós e outras pessoas que tenham a habilidade de manter crianças de algum modo ocupadas após as aulas. Conforme salientou o Dr. Elkind, durante as últimas duas décadas as crianças perderam em média 12 horas de tempos livres por semana. Ao mesmo tempo, o período dedicado a desportos duplicou e o número de minutos que as crianças dedicam a actividades passivas cresceu de 30 minutos para mais do que 3 horas por semana – isto sem contar com os intervalos para mirar passivamente o rectângulo fosforescente de uma televisão. "Os efeitos sobre a posterior vida escolar e académica são desastrosos. Ao lidar com ciências e matemática, por exemplo, os jovens sentem-se mais tarde empobrecidos em termos de imaginação e criatividade", sublinhou o Dr. Elkind. Também o Dr. Bob Marvin, da University of Virginia, salientou que após décadas de pesquisas está demonstrado que as experiências lúdicas e as puras vivências humanas fora das salas de aula, durante o primeiro período de cognição infantil, são aquelas que colaboram de maneira mais decisiva para as futuras habilidades académicas adultas e para uma competência de aprendizagem para o resto da vida.
No Departamento de Ciência de Computação da Universidade de São Paulo, o Dr. Valdemar Setzer vem estudando há muitos anos o tema dos Computadores na Educação (ver o interessantíssimo livro com o mesmo título). Consultado acerca do projecto Magalhães, ele declarou que semelhante medida resultará quase só inútil, ou altamente prejudicial para crianças e adolescentes. A distorção introduzida no modo de pensar, aliada aos fatores mais comumente discutidos, como perda de tempo com brincadeiras, perigos da internet devido à ingenuidade das crianças, e a falta do auto-controlo que só se alcança na idade adulta, acabam por prejudicar o rendimento escolar. Durante a última Multiconferência Mundial sobre Sistemia, Cibernética e Informática ele referiu como a totalidade do mundo educativo, a nível internacional, está hoje carente de uma profunda reforma, reforma essa que deve instituir uma intensificada humanização, e não a introdução fanática de cada vez mais tecnologia. Todos os projectos que apelam ao contributo de máquinas para a aprendizagem infantil contêm de certa forma uma dimensão sub-natural extremamente primitiva. A palavra de ordem irracional e robótica é sempre a mesma: quanto mais técnica, melhor para a raça humana.
Certamente o avanço ou até mesmo a sobrevivência da humanidade passa por uma modificação da visão que temos do mundo. Mas o detalhe moral a observar é que as máquinas devem ser mantidas no seu devido lugar, em vez de ficarmos nós escravos das facilidades que elas trazem para a nossa vida prática. O que está em causa não é só a patológica perda da habilidade de escrever à mão, ou a necessidade de milhões de crianças terem em breve de usar óculos para compensar a deterioração da vista, devido à intensa contemplação de mini-imagens a poucos centímetros de distância. O fenómeno do uso irrestrito de meios electrónicos entre as crianças da educação primária equivale a uma verdadeira agressão dirigida ao cerne da humanidade, uma vez que os incomensuráveis danos psíquicos e orgânicos provocados a longo termo por computadores, TV, telemóveis multi-funcionais, jogos de vídeo, etc. ocorrem precisamente durante os delicados primeiros passos da formação das almas infantis, prejudicando-as definitivamente no seu desenvolvimento harmónico e saudável. Conforme o Dr. Setzer comentou com palavras rigorosas e desabridas: "Isto só poderá levar ao aparecimento de adultos anti-sociais, com ideias fixas, passivos, fanáticos e pobres em forças de compaixão e criatividade". O tema pode ser consultado em "www.ime.usp.br/~vwsetzer/pals/palestras" que contém extenso material em língua portuguesa.

Um sumário
Uma recolha de dados dos muitos estudos existentes permite sumarizar dez efeitos negativos que os meios electrónicos exercem sobre crianças na fase pré-pubertária: (1) Inducão de uma admiração desmesurada por máquinas, conforme o complexo funcionamento intrínseco dos computadores permanece incógnito; (2) Estímulo para a ideia que máquinas dotadas de "inteligências artificiais" podem em muitos casos ser mais perfeitas do que seres humanos; (3) Cultivo de uma concepção materialista do mundo, com uma visão fatalística da humanidade e da vida, do tipo "tudo é previsível e programável"; (4) Inclinação para uma estratégia de vida baseada na fé computacional de "dividir para conquistar", ou seja, subdividir sempre um problema em partes menores, a fim de resolvê-las separadamente – o que resulta desastroso quando aplicado a seres humanos; (5) Deterioração dos valores de sociabilidade, uma vez que os computadores são usados individualmente e os contactos via internet, blogues, skype, emails, etc. permanecem sob a nervosa máscara cibernética; (6) Provocação de impulsos tendentes a realizar tudo na vida rapidamente e com variadas acções ao mesmo tempo; (7) Debilitamento das capacidades de concentração mental, contemplação e paciência; (8) Degeneração da memória e distorção da capacidade do pensamento criativo, conforme deixa de ser necessário memorizar tudo que é facilmente arquivável em gigantescas memórias electrónicas; (9) Incitamento à utopia de "aprender é fácil, aprender é como brincar", devido à pobre e infantilóide concepção dos softwares; (10) Danos irreparáveis para a habilidade de escrever e para os órgãos de visão, e eventualmente degeneração de funções neurocerebrais, devido à prolongada exposição a campos electromagnéticos nas proximidades da cabeça.

A experiência Magalhães – um tiro no escuro
No mundo dos computadores, os seus gurus dedicam-se tipicamente a exaltar uma doutrina tecno-fetichista do mundo e do homem, a qual vai depois despertar em políticos e académicos despreparados a sofreguidão de realizar experiências cegas, praticamente como um tiro no escuro, em busca de resultados quiméricos. Os dados exactos sobre as funestas influências psíquicas e orgânicas dos meios electrónicos sobre crianças em idade de educação primária estão aí patentes para serem consultados por qualquer pessoa, mas tecnocratas apaixonados pelos cérebros infantis como se fossem chips de silício de computadores, estão a derramar sobre todo o ensino uma violenta intelectualização acelerada, subproduto do sonho maníaco do sucesso académico como fundamento para a estratégia da sobrevivência.
A fanática experiência laboratorial do Magalhães em Portugal e o sonho de "um computador para cada aluno" é na verdade puro simulacro do credo visionário do americano Seymour Papert, um guru da informática e co-autor dos planos mirabólicos da OLPC para colar desde muito cedo um minicomputador às mãos de todas as crianças do mundo. Papert vangloriava-se de permitir crianças "aprender a aprender" e "pensar sobre o pensamento" através de máquinas. Semelhante actividade constitui entretanto uma das coisas mais abstractas e formais que se pode imaginar, praticamente equivalente a provar teoremas da matemática superior, com a diferença que a criança ilude-se com a criação de figuras infantis, sempre imitando jogos de vídeo, a fim de aumentar a atracção emocional. Pensar sobre o próprio pensar é algo que requer independência mental, absoluta maturidade e individualização, coisas que amadurecem só muito mais tarde na juventude. Na sua maioria, até mesmo os adultos não estãos suficientemente preparados para o complexo processo de "pensar acerca do pensamento". Tentar exercitar entre crianças esse tipo de introspecção e auto-controlo da actividade mental, equivale praticamente a uma laboração meditativa, algo que está evidentemente reservado para adultos.
A título de rifão educativo, os textos de divulgação do Magalhães apresentam para pais e mães a suposta necessidade de eles prepararem os seus filhos desde o mais cedo possível para "competências nas tecnologias de informação e comunicação". Colaboradores do projecto consultados junto à Universidade de Lisboa não tiveram pejo em até recomendar o uso a partir dos 4 anos de idade. A documentação faz inclusive uma inversão de valores: os adultos são apresentados como praticamente analfabetos tecnológicos, enquanto que as crianças são enaltecidas por possuirem qualquer coisa como uma sabedoria nata, devido a "viverem desde o nascimento cercadas por computadores, jogos de vídeo, aparelhos de música digital, câmaras e telemóveis" e terem sempre "visto na rua ou na televisão outras pessoas a utilizá-los". Sugere-se que as crianças possuem, como se fossem seres que já vêm semi-robotizados do útero materno, uma espécie de segunda natureza instintiva que lhes confere "um grande à vontade, em particular com os computadores, sem necessitar de explicações ou livros de instruções". Relegados assim para o papel de passivos cuidadores de proximidade, os pais são solicitados a simplesmente admirar os filhos "naquilo que eles já sabem fazer" e acompanhá-los para que "aprendam ainda mais". E apesar de vivermos em uma era sacudida pelo desastre da crescente desagregação social e moral de famílias, pais e filhos, o apelo absurdo das autoridades magalhânicas é para que os pais "estreitem a relação com os seus filhos no que diz respeito ao mundo das tecnologias".

Pais e mães são ainda convocados a ajudarem os seus filhos para que eles "vivam em segurança no mundo digital em que nasceram". Isto equivale a um alerta anti-terrorista cibernético, promovendo-se nas almas infantis a noção difusa de que nos subterrâneos incompreensíveis dos computadores está presente algo de perigoso. Muito mais perigoso é contudo outro aspecto raramente discutido: a segurança pessoal das próprias crianças. Conforme anunciou o Ministério da Administração Interna no seu recente Relatório Anual de Segurança Interna, o país sofre de crescentes índices de criminalidade. Assim, não é difícil de prever que meio milhão de crianças transportando diariamente entre casa e escola um moderno computador portátil, poderão tornar-se vítimas fáceis de assaltos organizados, inclusive com o uso de violência. Além do profundo choque psicológico provocado por tais eventos, qual não será o drama de isolamento vivido por uma criança que, além de não poder mais realizar em casa certas tarefas escolares e instrucções electrónicas colectivas na escola, ou participar nas folias digitais com os seus camaradas, ainda perde, conforme promete o folheto Magalhães, a sua "comunicação com o mundo"? Na América já foi suficientemente estudado até o insidioso fenómeno de ostracismo e tensão social que surge em classes onde há vários alunos "não equipados", resultando no aparecimento de duas classes de crianças, com efeitos desmoralizantes para toda a educação.
A experiência Magalhães pretende ainda que os pais pratiquem uma fiscalização sobre o uso dos computadores nas mãos dos filhos. A realidade é que a maioria das famílias não tem tempo, nem interesse, nem conhecimentos para isso. Se as tradicionais psicodrogas da televisão e dos jogos de vídeo já não merecem qualquer censura crítica pela maior parte dos pais – são até geralmente bemvindas como distracção aliviadora dos nervos dos adultos – como se pode esperar que uma família se comporte de maneira diferente, perante mais uma maquineta em casa? Tal como tradicionalmente acontece com cigarros e álcool, semelhante função policial para impedir certas conexões internéticas e imêilicas imorais, etc. só poderá provocar o aparecimento de uma tensão moral subliminar no seio das famílias, alimentando uma curiosidade natural ainda mais exaltada entre as crianças, como já foi confirmado em outros países, para se ultrapassar os obstáculos.
O dilúvio tecnológico magalhânico em um país assolado por um aflitivo analfabetismo funcional de quase 50% da população abate-se desastradamente também sobre a já doentia relação entre professores e Estado. O acanhado esquema intelectualista da máquina de educação estatal, agora exaltado pela orgia com uma experiência que é um tiro no escuro, com resultados imprevisíveis, não é capaz de compreender as verdadeiras dores dos nossos tempos, onde por exemplo nas salas de aula os professores começam a enfrentar cada vez mais verdadeiros pequenos tiranos, que não sabem conter os seus impulsos, regular as suas emoções ou reconhecer a autoridade pedagógica dos pais ou da escola. Tais alunos jamais terão sucesso, sejam quais forem os dinheiros e esforços monumentais aplicados em meras inovações técnicas enxertadas na escola.

Juntamente com o carácter realmente totalitário da experiência, haja visto que a mesma visa declaradamente a cobertura total do ensino básico do país, a documentação para alunos vem por sua vez colaborar para esvaziar o significado humano de qualquer professor. No Guia de Instruções para Alunos, o computador apresenta-se às crianças com uma pseudo-personalidade de "Eu", como uma entidade semi-orgânica que fala às crianças em termos íntimos e carinhosos para pedir coisas como "Tal como tu não deitas líquidos estranhos para os teus olhos, também não os podes deitar no meu ecrã", ou "Cuidado com a minha alimentação". Em caso de perda, a mais grave consequência mencionada é "Ficas sem mim", simulando o drama da morte entre adultos. Para esta encenação dedicada a conferir, já durante os primeiríssimos passos de robotização das crianças, uma face humana às máquinas, elas são até apresentadas às crédulas mentes infantis com a máscara de uma dimensão humanista global e ecuménica, que permite por exemplo que "tu comuniques com o mundo". E quando se trata do assunto para o qual a máquina foi afinal criada, não faltam rebuçados a prometer brincadeiras: "Juntos vamos trabalhar e divertir-nos imenso". É impossível não lembrar aqui de imediato aquele miserável período da nossa história, onde uma ordenação totalitária do universo infantil do país, igualmente afecto ao antigo Ministério da Educação, também fazia bastas promessas de divertimento. O hino oficial da Mocidade Portuguesa abria com as palavras: "Lá vamos cantando e rindo!".


É possível escolas sem computadores?

A questão das escolas poderem ou não funcionar sem computadores está mal formulada. Para ser concreta, a pergunta devia ser reformulada como: Em que faixa etária os meios electrónicos não devem fazer parte do ensino? Existe realmente há quase um século uma educação moderníssima e em permanente expansão, que responde cabalmente a esta pergunta e segue as suas consequências práticas. Trata-se da Pedagogia Waldorf, inaugurada pelo filósofo e pesquisador austríaco Rudolf Steiner. Iniciada na Europa, essa pedagogia reconhecida pela Unesco está hoje presente com mais de 1.000 escolas e 1.500 jardins de infância em todos os continentes e em quase todas as culturas do mundo, formando a primeira rede de educação global na história da humanidade.

Nas escolas Waldorf, pais e professores cooperam de mãos dadas, não há directores, não há repetição de anos e não há exames, mas é oferecida uma educação completa desde o nível pré-primário até a admissão às universidades. O interior e o exterior dos edifícios são concebidos como obras artísticas, reina nas salas de aula uma alegria pelo aprender, com uma atenção devotada à inteligência emocional e a uma interacção social dinamizada. Desde o primeiro dia que uma criança entra para uma dessas escolas, pratica-se uma orientação educacional dedicada principalmente à facilitação da expressão da personalidade única de cada aluno, cuidando-se de um saudável equilíbrio das dimensões física, anímica e espiritual. Esta linha pedagógica de crescente sucesso, perfeitamente adaptada aos tempos presentes e futuros, possui uma visão muito clara acerca dos perigos de uma intelectualização precoce das crianças durante o septenário anterior à puberdade.
Os fundamentos antroposóficos mais profundos da pedagogia Waldorf explicam que nos dois primeiros septenários da vida, ou seja, desde a mais simples instrução maternal caseira até ao período da escola secundária, as crianças atravessam duas fases absolutamente distintas. Até aos 7 anos, a aprendizagem decorre sobretudo por um processo imitativo do meio-ambiente humano e natural, e dos 7 aos 14 anos são os professores que assumem o papel de personalidades de referência, auxiliando as crianças a abrir os olhos para todos os conteúdos físicos e morais do mundo, promovendo os primeiros passos de um pensar realmente autónomo.
Em todo o mundo, mais de 1 bilhão de pessoas usam hoje computadores, sem saber que estão virtualmente escravizadas a um raciciocínio matemático simbólico. Embora o processo permaneça oculto e inconsciente, é impossível para uma criança ou um adulto accionar qualquer computador sem começar logo a raciocinar de maneira lógico-simbólica. Por outras palavras, uma criança é forçada a "falar" por meio de um pensar-maquinal abstracto, exigido pelos respectivos softwares préfabricados por adultos. Caso contrário, a máquina recusa a conversação. Forçar crianças em idade pré-pubertária a pensar de um modo formal e abstracto, tal como exigido por uma máquina electrónica repleta de simples sequências matemáticas desenvolvidas em laboratórios digitais, é algo que vai contra as suas naturezas intrínsecas, pois a energia de um pensar individual ainda não está despertada nas suas almas. Além disso, conforme foi confirmado pelos últimos estudos, a impregnação das mentes infantis com milhões de imagens já prontas vem intoxicar o desenvolvimento da imaginação, que é uma habilidade vital para os estudos cada vez mais complexos nos anos seguintes, inclusive durante a vida adulta.
Como pedagogia suficientemente esclarecida acerca da constituição integral do ser humano, a Pedagogia Waldorf assumiu com verdadeiro heroísmo a prática de manter as crianças distanciadas, de uma maneira natural e durante a idade pré-pubertária, de quaisquer computadores e meios electrónicos pseudo-educativos. Isto não reflecte qualquer sectarismo ou anti-tecnologismo, mas sim apenas a coragem de adequar a educação primária infantil de modo correspondente a uma profunda compreensão do que é o ser humano. Na educação, tal como em qualquer processo de desenvolvimento vivo, não se podem ultrapassar fases. Impingir a crianças uma atitude adultista, tal como acontece com o acesso indiscriminado a computadores, equivale a roubar-lhes a sua preciosa infância. Como diz o ditado africano: "A relva jamais crescerá mais rápido se for puxada". Pais e mães que durante toda a fase pré-pubertária da infância mantiverem nos lares uma distância cautelosa entre os computadores e os filhos, estão apenas a praticar o mesmo rigor amoroso que praticam quando, por exemplo, proíbem terminantemente às suas crianças de conduzir um automóvel, beber álcool, ingerir drogas, fazer fogo em casa, ou usar uma serra eléctrica. Os danos provocados pelos computadores simplesmente não são imediatamente tão evidentes como alguns dedos de criança amputados por uma serra eléctrica. As consequências são mais profundas e manifestam-se só com o decorrer do tempo, nas esferas da vida mental, emocional e volitiva.
É interessante citar alguns valores de um recente estudo feito nos EUA acerca das biografias de toda uma geração de alunos Waldorf que não tiveram computadores durante toda a fase pré-pubertária da sua educação, com uma duração total de 12 anos:

– 94% dos ex-alunos Waldorf ingressaram em estudos superiores
– 96% demonstraram altos valores na qualidade das suas relações inter-pessoais
– 94% demonstraram uma elevada capacidade de segurança e auto-confiança no comportamento
– 92% alcançaram altas cotações em termos de pensamento crítico e auto-expressão verbal
– 91% adquiriram as práticas e os valores essenciais para uma "aprendizagem contínua para a vida"
– 90% demonstraram altos valores de tolerância perante pontos de vista alheios
– 89% estavam satisfeitos com a escolha profissional que fizeram
– 82% valorizavam no seu trabalho sobretudo assuntos éticos e o auxílio para terceiros

O estudo estatístico averiguou assim três qualidades essenciais típicas verificadas em ex-alunos Waldorf: (1) Elevado senso estético e capacidade de pensar por si próprios, sabendo valorizar as oportunidades para colocar novas ideias em prática; (2) Apreciação e respeito por relações humanas duráveis, procurando oportunidades para serem úteis para os demais; (3) Impulsos éticos nas profissões que escolheram, mais um senso de orientação moral para navegar através das dificuldades e tentações da vida professional e particular.
A website www.sab.org.br/pedag-wal/pedag contém amplas informações em língua portuguesa sobre o tema da Pedagogia Waldorf.



Nota Final

Em paralelo com a vulgarização dos computadores como instrumentos úteis e necessários para a comunicação e o trabalho, ocorreu um fenómeno de deslumbramento das massas adultas, desejosas de aproveitar essa tecnologia nas suas vidas particulares, não só pelas legítimas vantagens da rápida consulta a fontes de informações, como também para navegações úteis ou inúteis na internet, mais o conforto quase autista de poder comprar coisas sem ter que encontrar pessoas, ou ir fisicamente a lojas. O segundo fenómeno, agora de características definitivamente sócio-patológicas, é a fascinação que uma nova tecnologia esvaziada de valores éticos e morais vem provocando entre personalidades governamentais, ministeriais e universitárias afectas ao capítulo da educação, até ao ponto de degenerar toda uma pedagogia humanista específica durante os muitos anos da escolaridade na fase pré-pubertária.

Até recentemente, o mundo da educação era um mundo que se alimentava de ideais e impulsos humanistas, filosóficos, pedagógicos e psicológicos; um mundo ávido de algo como um ainda desconhecido estudo profundo do homem, e para o homem. Junto com a capitulação irracional da máquina educacional estatal perante as máquinas digitais, surge agora ainda uma escandalosa dependência cega e escravista perante os ditames do mundo dos negócios. Numa perversa deformação de propósitos, a educação – que é simplesmente o futuro da humanidade – passa a depender de estratégias comercialistas, capitalistas ou propagandistas. Devido à enorme complexidade dos hardwares e softwares, essa dependência abriu também as portas para que uma classe de pretensos sábios cibernéticos de empresas multinacionais iniciasse uma intervenção de fundo em procedimentos puramente educativos afectando países inteiros. As mega-empresas e as suas estratégias de ganhos financeiros assumem agora o papel de conselheiros para uma táctica pedagógica de preparação de pais e professores para o desenvolvimento dos seus filhos e alunos.

Este é o momento histórico e dramático que estamos a assistir, conforme a miscigenação homem-máquina vem promover uma nova forma de barbárie colectivista, pintada de promessas futurísticas, obrigando educadores a desistir da sua função humanista e formadora primordial, e a tornar-se peças de um sistema robótico invisível. Toda uma antropologia pedagógica da primeira infância, uma verdadeira visão do que é o Homem perante os demais homens, o mundo e o cosmos , é atirada para o lixo para se inaugurar uma tecno-idolatria que não receia comparação com o recente passado negro totalitário e fascista de Portugal. Para pais e mães conscientes da sua sagrada missão de educação da infância, como nosso maior capital existencial, a actual experiência laboratorial megalomaníaca com o laptop Magalhães devia servir como um chamamento profundo à consciência e à articulação de respostas livres, por iniciativa própria, e por amor à prole que os procurou para vir ao mundo.

Na Europa a que Portugal pertence, uma das características dos mundos educacionais desenvolvidos é a alternativa de se poderem fundar escolas livres, pela iniciativa de pais, com currículo próprio independente, e subsidiadas pelo estado, ou seja, pelos dinheiros que todos os cidadãos já pagam pelo ensino em forma de impostos. Mas para isso é imprescindível uma remodelação da ruça legislação escolar portuguesa, que impõe a iniciativas escolares livres e de fim não-lucrativo limitações e subordinações impróprias para um país que se compreende como civilizado, europeu e respeitador dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, co-assinada por Portugal junto à ONU, estabelece no artigo 26/3: «Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos». E a Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, igualmente co-assinada por Portugal junto ao Conselho da Europa, estabelece no artigo 2 do protocolo adicional: «O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas».
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Prof. Raul Guerreiro
Formado pela Escola Superior de Pedagogia Waldorf de Stuttgart
Membro do Conselho Federal Parental Waldorf da Alemanha
Membro da Amnesty International

O autor concede a qualquer publicação, impressa ou digital, bem como a indivíduos e quaisquer entidades, os direitos de reprodução deste artigo.

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